sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Continuação "Desligamento"

Este artigo, de caráter etnográfi co, consiste em uma descrição daquilo que
ouvi e vi sobre a morte e os diferentes rituais a ela ligados no batuque de Oyó.
À exceção do trabalho de Norton Corrêa (2006) que dedica a segunda parte
de seu livro, “O batuque no Rio Grande do Sul”, aos mortos, não encontramos
trabalhos sobre o batuque gaúcho que tenham se debruçado sobre o tema.
Autores como Melville J. Herskovits (1943) e Roger Bastide3
(1985) tangenciam
a temática à luz de suas experiências etnográfi cas com o candomblé
baiano4
. Esses autores discorrem sobre a relação dos adeptos com os eguns,
os espíritos ou almas dos mortos, ressaltando aquilo que não fora encontrado
no Rio Grande do Sul – como as sociedades de eguns encontradas na África
e na Ilha de Itaparica/BA. A descrição que será oferecida vai ao encontro
2
As expressões nativas virão entre aspas, as palavras em ioruba e os conceitos em português
que diferem do uso corrente da língua serão grafadas sem ênfases, seguidas de notas
explicativas, ou com sua defi nição entre parênteses.
3
Bastide (1978) faz uma primeira síntese de rituais fúnebres no candomblé baiano, em tom
mais descritivo, próximo ao pretendido neste artigo. Contudo, devo frisar, aqui importa
o desfazer em si e não sua descrição para construir interpretações sobre a relação entre
vivos e mortos. De acordo com meus informantes, esse momento é decisivo para os
pais e mães de santo demonstrarem seu saber sobre o fundamento religioso (o que será
tratado adiante).
4
Vale lembrar as preocupações de Herskovits com a construção de escalas, ou seja, aquilo
que teria “guardado” mais ou menos da África no Novo Mundo. Já em Bastide (1985)
encontramos o candomblé baiano como a mais africana das praticas religiosas no Brasil.
Seu modelo seria, mais tarde, criticado como sendo nagocêntrico. Além disso, notemos
que ambos os autores realizaram curtas incursões etnográfi cas no Rio Grande do Sul
Corrêa (2006) já apontara tal questão.
a partir de uma série de rituais que desligarão o morto dos vivos e vice-versa,
sendo o mais importante deles o eru.
Proponho que se tome o desfazer como lugar privilegiado para alargar
o conhecimento antropológico sobre as noções de alma (relacionada ao
conceito de egum), corpo e pessoa (geralmente estudadas a partir da feitura),
e de vida e morte, como fi cará claro ao longo do artigo. Não se trata de uma
postura que vá de encontro aos estudos sobre feitura e construção de pessoas
e corpos nas religiões afro-brasileiras. Nelas encontramos importantes contribuições,
como as de Anjos (1995), e a ideia do apronte (do fazer o chão)como
metáfora recíproca com o nascimento biológico, e as de Goldman (1984),
para o qual a pessoa construída ritualmente no candomblé é folheada,
composta por múltiplos componentes que só entram em equilíbrio após
vinte e um anos de iniciação, momento quando se atinge o tata (quando a
pessoa possui domínio sobre eguns e vodunisis e uma não-submissão aos
orixás). Essa realidade múltipla e folheada que parece dar lugar a um ser
Uno e indiviso, na verdade, nunca se realiza, pois somente os orixás são os
seres verdadeiramente unitários. Por isso, tem-se uma pessoa descontínua em
constante busca pelo equilíbrio. O que o desfazer evidenciará não é apenas
uma concepção outra de pessoa, mas que as porções que a compuseram ao
longo da vida se destacam umas das outras, recebendo diferentes destinos
com o eru.
Os dados são provenientes de meu trabalho de campo em uma casa
do lado7
de Oyó, em Gravataí/RS, presidida pelo pai de santo Odacir do
Ogum. A nação é composta pelos descendentes no santo de Mãe Emília
da Oyá Ladjá – princesa africana que iniciou esse lado no Rio Grande do
7
O batuque é uma religião brasileira de “matriz” africana que cultua doze orixás e é
praticada, principalmente, no Rio Grande do Sul. Essa religião é dividida em “lados” (ou
nações): Jêje, Ijexá, Cabinda, Nagô, Oiá e Maçambique, “[...] cada lado corresponde,
teoricamente, a formas rituais diversas” (Cf. Corrêa, 2006, p. 50). Oro (1999) vem estudando
a transnacionalização dessa religião para a Região Platina. Há relatos de casas de
batuque abertas no estado de Santa Catarina, também. Sobre Oyó, Oro (2002) aponta
para o escasso conhecimento sobre a nação. O único trabalho dedicado a essa nação é a
dissertação de mestrado de Jacqueline Pólvora (1994). Para maiores informações sobre
as diferentes nações e modalidades de culto, ver Oro (1994; 2002) e Corrêa (1994).
Acontece que se morre de várias formas e ao morrer pode-se perder uma
parte do corpo, como um braço ou uma perna, ou fi car deformado. É Nanã
Burukê quem juntará as partes e quem consertará os estragos, juntando os
caquinhos. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não para. Nanã
Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela. Nanã Burukê
é a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum lugarzinho na
praia – pedras, mata, beira de mar ou rio – e fi ca esperando o que a “lei
manda”. Se nesse tempo, “tudo” (rituais e oferendas) for feito direitinho,
ela irá juntar os pedaços para reconstruir e levar o egum para perto do seu
orixá de cabeça. Diz-se que a cada ritual realizado a pessoa, agora egum, vai
se aproximando mais e mais de seu orixá. Nanã vai levando o egum – ou
alma11 – para perto dele. Pois o fi nal de todos aqueles que são de religião é
aos pés de seu orixá12
.
* * *
As pessoas com quem conversei me contaram que batuqueiro tem de
ser enterrado, nunca cremado. O caixão deve ser embalado (para frente e
para trás). Somente homens “prontos” podem segurar as alças do caixão.
11 Em meu campo, alma é equivalente à pessoa sem a sua parte corpo. O corpo é algo a
ser ocupado, seja por essa parcela da pessoa, seja por um orixá inteiro, seja pela metade
orixá/metade pessoa – os axeres. Pessoa é o resultado da soma das parcelas alma e corpo,
e também seu orixá – esse não como parcela. Aqui, talvez, a evidência de que as opera-
ções de adição e subtração talvez sejam metáforas defi cientes. Contudo, são capazes de,
por meio de simplifi cações, dar inteligibilidade a conceitos formulados com tamanha
complexidade pelos batuqueiros. Alma, corpo e orixá se tornam espécies de parcelas da
soma total, que se separam. Orixá fi ca em Orum (mundo dos orixás). A alma – agora
egum – deve ir para Orum, também. E o corpo fi ca debaixo da terra, vazio. O egum,
alma sem corpo, é, portanto, perigoso, pois que desejoso de outros (novos) corpos para
ocupar. Por isso, o eru não apenas desligará os vivos daquele que morreu, mas ensinará
o egum que ele não pertence mais a este mundo, como já mencionado. Sobre os perigos
dos eguns, ver Corrêa (2006, p. 174).
12 Para uma descrição alternativa dos velórios entre os batuqueiros, ver Corrêa (2006,
p. 136-139). Note-se que o autor realizou etnografi a no tempo em que se velavam os
mortos no salão das casas de religião, daí uma serie de diferentes rituais. É ao redor do
corpo velado que a roda de eguns acontece (Corrêa, 2006, p. 157).

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